segunda-feira, 4 de abril de 2011

Amor? O filme.

 

Quem, do outro lado destas linhas, se arriscaria a afirmar, sem medo de faltar com a verdade, que nunca viveu ou que se considera isento de vir viver uma relação amorosa marcada por algum tipo de violência - seja ela física, moral ou verbal? Quem, entre todos nós, estará livre da veleidade de tomar um rompante de ciúmes, próprio ou alheio, como prova de amor e inocente alimento para a autoestima, e não como exercício inconsciente e perverso de dominação e poder? Que outros mecanismos podem fazer com que uma relação baseada no mais sublime dos sentimentos, o Amor, deságue ou degenere em algum tipo de opressão ou violência? Como saber aonde termina o Amor e começa o phátos do Amor? Até aonde este impulso gregário, intrínseco à condição humana, pode levar, quando o Belo, que lhe é inerente, insiste em se manter vivo sob, a despeito e acima de quaisquer circunstâncias, por mais terríveis que elas sejam?

Sem saber amar não adianta amar profundamente.
William Shakespeare

O caráter explosivo e inquietante das histórias que se apoiam no binômio Amor e violência, o desconforto que o tema provoca, sua complexidade e seu potencial imagético levaram João Jardim, diretor de Janela da Alma e Pro Dia Nascer Feliz, e co-diretor de Lixo Extraordinário, a realizar o mais híbrido e laborioso de seus filmes: Amor?, "uma mistura poética de documentário com ficção", como ele mesmo define.

A mistura não é obra do acaso. Desde o primeiro momento, ficou claro para Jardim que, mesmo conquistando a confiança dos entrevistados a ponto de extrair deles um depoimento de peito aberto sobre o que viveram, a utilização nua e crua dos testemunhos colhidos esbarrava em uma questão ética que podia evoluir para uma questão legal. Como reagiriam seus parceiros diante da exposição, pelo outro, da própria intimidade? Que tipo de consequência isso poderia acarretar na vida daquelas pessoas? E se, com o filme pronto, um dos lados alegasse que a exibição do filme iria prejudicar sua família, mesmo depois de já ter autorizado? Como garantir que a liberação do filme não enveredasse por um intrincado novelo jurídico?

Delegar a atores a árdua tarefa de trazer para si e tornar verossímeis aquelas histórias surgiu então como a única alternativa plausível. Uma alternativa que envolvia riscos, é claro. E, de certa forma, reclamava uma espécie de "questionamento" do que se convencionou chamar de documentário.

COMBINAÇÃO INCOMUM

Fruto de um ano de pesquisa de campo, envolvendo a coleta de cerca de 60 depoimentos em áudio; duas semanas aproximadas (e descontínuas) de filmagens; e mais de 500 horas de edição, Amor? reúne, contrapõe e multiplica, em uma combinação incomum, o viço de oito histórias verídicas (transcritas com fidelidade e editadas com precisão cirúrgica); a força poética da imagem; o dom evocatório da música; e o poder de convencimento das grandes interpretações. Com roteiro assinado por João Jardim em colaboração com Renée Castelo Branco, responsável também pelo trabalho de pesquisa, direção de fotografia de Heloísa Passos, música de Lenine e um elenco formado (pela ordem de aparição) por Lilia Cabral, Du Moscovis, Letícia Colin, Claudio Jaborandy, Silvia Lourenço, Fabiula Nascimento, Mariana Lima, Ângelo Antônio e Julia Lemmertz, o filme empreende, em 100 minutos de duração, um mergulho profundo nas águas turbulentas e turvas das histórias de Amor que repetem como um refrão a pior de suas rimas: Dor. Mas procura se manter à margem de todo qualquer tipo de estereótipo, conceito previamente estabelecido, julgamento ou estigmatização, e trazer à tona a todo momento o que lançou e aprisionou aquelas pessoas numa situação extrema e indesejável da qual foi tão difícil se libertar: o que há de mais imanente e universal no Amor - o prazer e a beleza. Uma escolha que busca aproximar o espectador do tema de tal maneira que ele seja capaz de olhá-lo sob um novo ponto de vista: com isenção, transcendência, humanidade e, se possível, com honestidade para saber reconhecer naqueles processos a expressão de seus próprios instintos - dos mais elevados aos mais rasteiros.

É preciso não esquecer e respeitar a violência que temos.
As pequenas violências salvam-nos das grandes.
Clarice Lispector

Amor?, uma produção da Copacabana Filmes e da Fogo Azul Filmes, em co-produção com a Labocine e o canal GNT, da Globosat, foi filmado em super 16mm e finalizado em 35mm. O longa-metragem chega ao circuito nacional em 15 abril, depois de arrebatar o troféu de Melhor Filme, conferido pelo Júri Popular no Festival de Brasília em novembro passado, num claro indício de que João Jardim e sua equipe de colaboradores atingiram o objetivo.

OS CAMINHOS (E DESCAMINHOS) PARA CHEGAR A AMOR?

Pesquisa é botar uma primeira e subir a ladeira.
Não tem outro segredo.
Ou melhor, tem um segundo: ter clareza do que se está
fazendo e focar no que realmente interessa.
Renée Castelo Branco

Como nos documentários anteriores de Jardim, o que serviu de base à construção de Amor? foi um mapeamento cuidadoso do universo sobre o qual queria trabalhar. Parceira em Janela da Alma, Pro dia Nascer Feliz e Lixo Extraordinário, a jornalista e pesquisadora Renée Castelo Branco fez um primeiro levantamento junto a organizações de proteção e apoio tanto a mulheres vítimas de agressão quanto a homens agressores - como o Centro de Defesa da Mulher (CEDIM), o Centro de Atendimento a Mulher (CIAM), a Casa Abrigo/Rio Mulher, o Instituto Noos, o Juizado Especial de Violência Contra Mulher (RJ) -, que forneceram dados e abriram caminho para o contato direto com possíveis personagens. Feita uma primeira triagem, Renée e João saíram em campo, cada qual pro seu lado, e munidos apenas de um gravador MP3, para colher os depoimentos. O corpo-a-corpo com os entrevistados logo os fez ver que não estavam no caminho certo. Ter boas histórias não era o bastante. Era preciso também que seus protagonistas fossem capazes de refletir (e, portanto, de provocar uma reflexão) sobre elas. E a origem humilde das pessoas que recorrem à ajuda deste tipo de instituição mostrou-se um elemento limitador. O foco da pesquisa voltou-se então para as classes média e média alta, de onde saíram sete dos oito relatos selecionados para o filme.

Paralelamente ao trabalho de pesquisa, João Jardim foi pesquisando e construindo com a diretora de fotografia Heloísa Passos idéias para captação de imagens que pudessem remeter ao lado belo, prazeroso e lúdico do Amor, e também às armadilhas que ele pode conter.

Exceção feita a Lilia Cabral e Angelo Antonio, que gravaram no Rio de Janeiro, as filmagens com o elenco foram realizadas em uma fazenda em São José do Vale do Rio Preto, no interior do Estado, e obedeceram a um processo muito peculiar de trabalho (confira na entrevista com João Jardim e nos depoimentos dos próprios atores). Pontuada por versões instrumentais de clássicos da canção brasileira inspirados no que há de mais terno e doce no impulso amoroso (como Carinhoso, de Pixinguinha, e Beatriz, de Edu Lobo e Chico Buarque), e interpretados em duo com grandes solistas, a música de Lenine forma, com as imagens quase oníricas evocadas por Jardim e Passos, um contraponto lírico ao teor dorido dos depoimentos, ajudando a imprimir ao filme uma insuspeitada leveza.

Sim, me leva para sempre Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Pra sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Edu Lobo e Chico Buarque

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